A lei do apadrinhamento civil deixa a porta entreaberta ao acolhimento de crianças por casais do mesmo sexo. Não há nenhum ponto na lei que regulamenta esta nova figura jurídica que proíba homossexuais solteiros ou casados de apadrinharem crianças institucionalizadas. Aqui, a homossexualidade é meramente um factor de ponderação à habilitação dos padrinhos, ao lado de outros factores como as condições económicas, sociais e emocionais dos candidatos.
O decreto-lei remete para o disposto no regime que permite o casamento civil entre pessoas do mesmo sexo: não é admitida a possibilidade “legal da adopção por pessoas casadas com cônjuge do mesmo sexo”, mas admite-o “para efeitos da ponderação”. Ou seja, a lei “não impede [o acolhimento de crianças por homossexuais], diz antes que é um factor a ponderar”, explica a advogada Lídia Branco.
O apadrinhamento civil é a nova figura jurídica que permite que pessoas com mais de 25 anos possam acolher uma criança ou jovem em risco, a título definitivo, desde que o vínculo à família biológica não se perca e pais e padrinhos estabeleçam um compromisso. “A partir do momento em que os pais biológicos aceitam, parece-me uma porta entreaberta”, acrescenta Lídia Branco.
A omissão de impedimentos ao apadrinhamento civil por casais homossexuais, num momento em que a lei que regula o casamento gay proíbe que pessoas casadas com cônjuges do mesmo sexo possam adoptar, é um dos pontos da nova figura jurídica que merece críticas. “A lei é dúbia. Remete para as normas da adopção por casais homossexuais, mas não as usa como critérios de exclusão nas candidaturas. Ao referi-las como factor de ponderação, pode haver tribunais que venham a permitir”, acusa Isilda Pegado, jurista e membro da Plataforma Cidadania e Casamento, que invoca “o superior interesse da criança” para apelar à necessidade de rever a lei. “Não admito que seja este o caminho.”
Os pressupostos da adopção “deveriam ser válidos para os padrinhos civis, se não o são, estamos perante uma perversão das normas”, entende Luís Villas-Boas. O director do Refúgio Aboim Ascensão questiona: “Uma criança não pode ser adoptada por um casal do mesmo sexo, mas depois é posta em casa de um casal homossexual nos moldes do apadrinhamento civil? Qual é a diferença?”
Preparar a transição
António Serzedelo, presidente da Opus Gay, entende que a lei foi feita nestes moldes, não só para “responder ao problema das crianças institucionalizadas”, mas também para “preparar a opinião pública para a adopção por casais homossexuais”. “É uma resposta inteligente para preparar a sociedade para estas novas famílias, sem chocar tanto como chocaria a adopção.”Já Paulo Côrte-Real, presidente da Ilga, não o entende como uma fase preparatória à aprovação da adopção por casais do mesmo sexo, mas como “mais uma proibição”. “Ao remeter para o artigo que proíbe a adopção, está a sugerir que se proíba.”
Um dos argumentos mais usados contra a adopção por casais de gays e lésbicas é a ausência de uma referência materna e paterna na educação da criança. Se o apadrinhamento civil obriga a manutenção dos laços com os pais biológicos, esse argumento deixa de ser válido? Se Paulo Côrte-Real entende que “não há nenhuma razão científica para recusar o acolhimento, apadrinhamento ou adopção a pessoas do mesmo sexo”, Isilda Pegado garante que o problema se mantém porque os padrinhos são a maior referência: “Existe um pai e uma mãe, mas são os padrinhos que têm as responsabilidades parentais.”
por Sílvia Caneco, in Ionline