Apeles, olha a chinela!

fotoDê-se um texto a ler ou a ouvir a um grupo e, em regra, pelo menos uma pessoa terá qualquer observação inteligente a fazer, por mínima que seja. Basta ver as «cartas ao director» na grande imprensa. Mas não só. Ao meu redor colecciono exemplos. Este é um pequeno «pacote» com alguns.
Há dias encontrei um antigo colega. Perguntou-me o que achava de duas passagens no Mau Tempo no Canal. Numa, o narrador diz que, do Campo Raso, na ilha do Pico, Margarida contemplava a Horta. Garantiu-me ele, Carlos Fagundes, que daquele local isso é impossível. Foi pároco nas redondezas e conhece bem a área. Perante essa evidência, que poderia eu contra-argumentar em defesa de Nemésio? A outra: no romance, Margarida foi à missa em Sexta-Feira Santa. Impossível! – acrescenta ele, que sabe da poda porque foi padre – esse dia é o único do calendário litúrgico em que não há missa.
Ora toma, meu querido Nemésio. Nenhum dos teus revisores entendia nem da geografia picoense nem de liturgia.
Falei em «pacote» porque estas foram apenas para servir de prefácio à seguinte. Numa das sessões das décimas Correntes d’Escritas, Gonçalo M. Tavares leu uma das suas inconfundíveis mini-estórias tão sua marca. Eu resumo grosseiramente: um homem vai pedir emprego e cortam-lhe uma mão. Volta mais tarde em nova tentativa, cortam-lhe a outra mão. Não sendo da estirpe de desistir, regressa e volta a pedir emprego. Cortam-lhe a cabeça.
Assisti à sessão no fundo do auditório a abarrotar de gente, dezenas de pessoas sentadas nos corredores. Veio o tempo de perguntas e pedi o microfone. Tinha uma: aquele final abrupto de estória à Anton Chekhov deixava-me uma enorme curiosidade. Para onde terá então ido trabalhar esse tal indivíduo sem mãos nem cabeça? Terá sido para o Governo?
Depois da chalaça, o diálogo com a mesa prosseguiu sério. Do meio da sala, levanta-se um ouvinte e caminha para a porta de saída. Passa por mim e cochicha-me: «Aquele homem não podia nunca ir trabalhar para o Governo. Sem mãos, como poderia ele meter dinheiro ao bolso?»
Não resisti. Voltei a pedir o microfone e tornei público o comentário desse anónimo que pelo menos eu desconhecia por completo.
Dia seguinte. No átrio junto ao auditório, os fumadores vingam-se da privação da chucha nos interiores e o recinto torna-se uma ágora grega de trocas de conversas em camaradagem absolutamente horizontal. De repente, uma cara desconhecida, olhar inteligente e expressão escondida por detrás de espessa barba faz-me sinal de aproximação. Quer dizer-me alguma coisa, mas evita ser intrometido. Avanço eu porque lhe reconheço o rosto. Exactamente o mesmo que na véspera passara por mim e mandara aquela boca. Meio entredentes, explica: «Considerei melhor. O dito personagem sem mãos e sem cabeça, lembra-se?»  Eu: «Sim, claro. Foi você que mandou aquela forte. Claro que me recordo.» Então o meu anónimo continuou: «Reconsiderei. O melhor emprego para ele não é no Governo, mas no Banco de Portugal. É que, sem cabeça, obviamente não tem olhos e não precisa deles porque nunca vê nada. Sem mãos, também não tem problema. Os amigos tratam de lhe pôr dinheiro ao bolso.»
E desapareceu.
Não resisti a, antes da minha palração pública, divulgar essa emenda do meu comentador privado. Tive de fazê-lo, porque corria o boato de que eu inventara a estória. Insisti que não, pois procuro ser fidedigno nos relatos. Se digo que aconteceu, aconteceu mesmo. Como a mãe do garoto da minha terra que foi posto fora da escola. Entra em casa a chorar sem conseguir explicar a razão. Mamã decide tomar conta do caso e vai à professora. «O meu filho foi mandado para casa porquê?» Ouviu então: «Porque ele disse que viu a coisinha da Joana.» Venta levantada, a mãe reagiu: «Saiba a senhora que o meu filho pode ser o que for, mas se ele disse que viu é porque viu mesmo!»
Horas mais tarde, outro indivíduo veio confidenciar-me a identificação do meu comentador particular. Director do Varazim (assim, à antiga) Teatro. Deu-me o nome mas, se o moço falou sempre em voz baixa, se calhar é porque prefere mesmo manter um semianonimato.

 

 

Onésimo Teotónio de Almeida

Crónica publicada na edição nº 79 (Abril) da LER

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