Em Fátima pequei por ti. Peregrinação aos santuários da má vida

foto3A cidade das aparições não vive apenas da fé. Na noite mais sagrada do ano, conheça o outro lado, das festas, copos e dos bares duvidosos.

 

A casa fica perdida numa das estradas secundárias de acesso a Fátima. Por estes dias, a terra afamada pelas aparições está a rebentar pelas costuras. E aqui, no lugar onde nos encontramos, a meia dúzia de quilómetros do centro da cidade, os espaços para estacionar também se esgotaram. Enquanto o Papa Bento XVI celebra a missa para centenas de milhares de fiéis, há quem esteja de peregrinação a outro “santuário”. Homens para quem a fé veste saia curta com botas altas, usa pestanas falsas e fala com sotaque.

É um dos bares mais antigos e bem conhecido dos habitantes de Fátima. Quem o visita diz ser “um sítio como outro qualquer”. “Bebe-se um copo e fala-se com uma miúda. O resto depende da tua sorte”, avança a custo o proprietário. Explicamos que estamos a fazer um roteiro de Fátima alternativo. Primeiro ao homem que está na porta, depois ao dono. Nem um nem outro quer falar. Os jornalistas não são bem-vindos aqui. “A maior parte dos clientes gosta de ter a sua privacidade”, emenda o dono. Ainda assim, convida-nos a ver o espaço.

 

Lá dentro, num ambiente escuro, oito mulheres estão sentadas nas mesas da entrada. Há um pequeno palco com um varão de striptease e umas cortinas escuras que dão para uma sala discreta ao fundo da pista. “Para tomar um copo mais íntimo”, explica o dono. As mulheres, quase todas de nacionalidade estrangeira, observam os homens de cima a baixo e fazem permanentes investidas de sedução, antes de avançarem com conversa.
“O negócio não anda bem para estes lados, a clientela escasseia”, queixa-se uma delas, brasileira, depois da nega de um cliente para lhe oferecer um copo. Hoje, porém, é um dia excepcional: com tantos forasteiros na cidade, há novos clientes encostados ao balcão. Uma raridade, garante o dono. “A maior parte costumam ser pessoas conhecidas”, diz enquanto faz contas às caras familiares. “Hoje não conheço praticamente ninguém.” Apesar dos motivos da peregrinação não se compadecerem com visitas a casas de alterne, há quem procure este tipo de diversão nos intervalos da fé. “Olhe que até padres nos visitam.”

 

Copos e campismo Os caminhos da fé, já se sabe, não são linhas rectas. Pertencem ao homem, com todas as imperfeições inerentes à condição humana. Uma premissa que não conhece excepções. “Fátima é uma terra como outra qualquer”, atira um comerciante em plena rua. Neste caso, o “outra qualquer” surge para justificar os passos de quem visita a terra santa de carteira recheada e fé enviesada. Entre visitas ao santuário e à nova igreja, há quem goste de se sentar num bar para beber copos e embalar a crença. O sacrifício fica reservado para a noite, no desconforto das tendas.

 

Sentados numa esplanada do centro da cidade, um grupo de dez homens recupera o fôlego de uma caminhada desde Viseu até à terra santa. Os helicópteros militares que sobrevoam a cidade anunciam a chegada do Papa, mas aqui a discussão é outra: futebol. O dono do restaurante personifica bem a alma dividida destes homens de fé: tal como eles, usa um lenço verde celestial ao pescoço alusivo à visita de Bento XVI, e no peito uma camisola Jesus, o treinador do Benfica, elevado a santo pelas magias do photoshop aplicadas numa t-shirt.

 

“Ver o Papa?”, pergunta ao telefone um dos peregrinos. “Ainda tenho meio metro de cerveja para beber.” Pode até soar a exagero, mas, aqui, as cervejas – chamadas imperial à Benfica – são servidas em copos altos, com mais de 40 centímetros de altura. E se as rodadas sucessivas que vêm para a mesa não forem suficientes, na carrinha destes peregrinos há álcool de sobra para os próximos dias: “Cada um trouxe dois garrafões de vinho”, garante. A noite adivinha-se longa.

 

Há qualquer coisa de festival de Verão na visita do Papa a Fátima. Um metro quadrado de terreno é suficiente para montar a tenda e assegurar dormida para os próximos dias. Filipe Sousa, 20 anos, veio desde Espinho numa excursão. Uma viagem que ele e os amigos repetem todos anos por altura do 13 de Maio. Fomos encontrá-lo à tarde, enquanto decorria a primeira missa do Papa no santuário, numa tenda do parque 12. Chegou esta madrugada e aproveita agora para descansar. “Para a procissão das velas?”, perguntamos. A resposta veio em tom de vacilo: “Também, mas principalmente para a festa de logo à noite, no parque”, confessa.

 

Apesar de não se ouvirem djambés ou cânticos tribais – aqui apenas se escuta música religiosa – é frequente os grupos mais jovens se juntarem à noite para confraternizar. Com todos os excessos que confraternizar implica: “O Papa perdoa”, brinca outro jovem do grupo, desculpando-se com uma “fuga ao dia-a-dia” e uma forma de se divertir. “Essencialmente, queremos curtir”, atalha o amigo Filipe. Será que Deus o perdoa?

 

 

 

 

André Rito ( in I)

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