O almoço em casa de Mafalda Carvalho, 44 anos, começa com um queijo fresco acompanhado de tostas. Segue-se uma massa com frango e legumes. E, à sobremesa, come-se um delicioso bolo de cenoura e nozes. Apesar da ementa diversificada, àquela mesa não chegou nem um grama de glúten. Mafalda descobriu, há ano e meio e por acaso, que sofre de uma doença autoimune que não lhe permite digerir alimentos com essa proteína presente no trigo, centeio, cevada e aveia. É celíaca. Na altura, depois de passar uns dias no hospital, com uma forte anemia, encarou tranquilamente o diagnóstico e vive, desde então, com o mesmo otimismo que sempre a caracterizou. Apesar do hipertiroidismo e da osteoporose que recebeu de herança, por ter passado tantos anos sem saber do que sofria. “Adaptei-me muito facilmente, mudei a despensa e não fiz um drama disto.”
Mafalda pertence aos cerca de 1% da população mundial a quem foi detetada a doença. Imagina-se que sejam muitos mais, porque os sintomas são difusos. “Os mais típicos são diarreias, cólicas, distensão abdominal e má absorção dos nutrientes”, explica Paulo Ratilal, gastroenterologista. “Mas, nos casos de subdiagnóstico podem surgir complicações em todos os órgãos e sistemas.”
Depois de saber que era celíaca, Mafalda engordou oito a nove quilos, explicados pelo facto de o seu intestino ter deixado de ser agredido pelo sistema imunitário e ter passado a absorver melhor os alimentos.
Separar o trigo do joio
No entanto, algumas celebridades vieram a público abrir guerra ao glúten e defender a sua exclusão dos menus como forma implacável de perder peso. A cantora e atriz Miley Cyrus até escreveu um tweet aconselhando toda a gente a experimentar a dieta, nem que fosse apenas por uma semana: “As mudanças na pele, na saúde mental e física são extraordinárias.” Vitoria Beckham, Gwyneth Paltrow e Lady Gaga são outras seguidoras deste tipo de regime. Desde então, várias pessoas, sem doença celíaca, optaram por deixar de lado os alimentos à base de trigo. Num recente estudo de mercado norte-americano, 30% dos inquiridos mostrou vontade de cortar nos alimentos com glúten.
Rita Jorge, dietista da Associação Portuguesa de Celíacos, conhece a nova moda, mas discorda dela. “O glúten é uma proteína vegetal, que não engorda nem emagrece. Pode perder-se peso quando se restringe a sua ingestão, porque se corta em produtos como bolos, refeições preparadas ou molhos.” E a especialista alerta para o perigo dos produtos de substituição, que contêm o dobro ou o triplo de gorduras saturadas e açúcares – é com eles que a indústria consegue compensar a consistência perdida pela ausência de glúten. Estudos internacionais mostram que esses produtos são deficientes em fibra, ferro, ácido fólico, cálcio, vitamina B12, fósforo e zinco.
O médico Paulo Ratilal também discorda de que uma pessoa saudável corte nesta proteína. “Quando se muda para uma dieta sem glúten corre-se o risco de se seguir um mau regime, com tendência a uma alimentação mais proteica.”
Um filão a explorar
Em 2011, um painel de especialistas internacionais admitiu a existência de outro tipo de reação à proteína do trigo, batizando-a de “sensibilidade não celíaca ao glúten”, aquilo que vulgarmente se chama intolerância. Os problemas da nova patologia são a ausência de métodos de diagnóstico e a escassa literatura científica existente. Crê-se que o aumento destes casos se deva ao tipo de alimentação atual, ao excesso de comida à base de trigo, centeio e cevada (a fast food faz parte deste grupo), ao glúten que é adicionado a uma série de produtos e à má qualidade dos cereais. “Hoje comem-se mais sandes do que legumes”, nota a dietista Rita Jorge.
O glúten não nos faz falta – é facilmente substituído por outras proteínas. Mas com custos. Segundo um estudo da DECO, os produtos de substituição saem cinco a sete vezes mais caros do que os tradicionais. E a indústria já descobriu o filão. Só no ano passado, os americanos gastaram 2 mil milhões de euros a abolir o glúten das suas vidas. Por cá, uma conhecida cadeia de pizzarias já introduziu no menu duas opções para intolerantes. E as principais grandes superfícies têm, na sua gama de marca própria, alimentos isentos de glúten. O Continente foi pioneiro. Oferece este tipo de produtos desde 2007, num segmento que cresceu a um ritmo de dois dígitos, só no último ano. Esse aumento fez com que diversificasse a oferta: bolachas de arroz de milho, queques de chocolate, pão de milho para sandes, baguetes pré-cozinhadas, mistura para bolos e pão. O grupo Auchan introduziu a gama em 2011, com dez referências básicas, como pães e bolos. “Hoje, já duplicámos essa oferta com preparados para pão ou cereais de chocolate”, regista Margarida Malheiro, diretora de marca própria, garantindo uma poupança de 15% a 30% face aos “seus congéneres” de outras marcas. Não revela os resultados desta aposta, embora os considere “muito satisfatórios”.
Tudo feito em casa
Sempre que, na sua consulta, aparecem pessoas a queixarem-se de dores de cabeça, obstipação, diarreia, eczemas, problemas na tiroide ou desequilíbrios de peso, Minnie Freudenthal, médica internista, faz-lhes um desafio: “Experimentem tirar o glúten da alimentação, durante três meses, para ver como o organismo reage. Mas não vale furar o regime.” Aboli-lo só para emagrecer, considera, “é demasiado simplista”.
Sabe que ainda não há evidência científica sobre o assunto, mas também que a essas conclusões demora-se 30 anos a chegar. Até lá, prefere ir apalpando terreno, ganhando experiência. Os resultados com os seus pacientes (e consigo própria) têm sido muito positivos. Não admira: “Além de comermos glúten em excesso, hoje em dia ele é processado de maneira diferente. A molécula, em vez de ser partida, é espremida, indo inteira para o aparelho digestivo. Os pesticidas também provocaram mutações na planta para resistir aos produtos químicos.”
Minnie Freudenthal não lança o desafio sem rede – ensina a criar alternativas caseiras para fugir ao excesso de açúcar e gorduras dos produtos das lojas, usando farinhas de arroz, milho, grão, millet ou polenta. E aconselha a utilização de goma xantana, um aditivo indispensável para manter a consistência dos alimentos cozinhados sem glúten.
Sofia Vilar de Bó, 49 anos, não foi tão longe na transição. Mas, de há um ano para cá, por causa das dores de cabeça constantes, da sinusite e dos problemas de rins que a incomodavam, passou a evitar o glúten. Também ficou feliz com os cinco quilos que perdeu ao resistir às pizzas ou aos bolos de pastelaria. Embora se sinta muito melhor de todas as maleitas e com a sua silhueta, falta-lhe persistência. Prevarica várias vezes, apesar de fazer uns batidos ao pequeno-almoço capazes de apagar o sabor apetitoso do pão. Como lhe custa seguir a dieta a preceito, enuncia o mantra de quem está em desintoxicação: “Hoje não comi, amanhã nunca prometo”.
in Visão