“Quase 80% da população mundial [de cagarros] escolhe os Açores para nidificar e é uma ave que é quase um símbolo dos Açores”, afirma, em declarações à Lusa, Rúben Coelho, um dos seis vigilantes da natureza da ilha Terceira, que entre 15 de outubro e 15 de novembro passam os dias e as noites a recolher cagarros em risco e a libertá-los num local seguro para que se possam lançar no primeiro voo transatlântico.
Desde 1995 que a campanha SOS Cagarro sensibiliza a população açoriana para a necessidade de proteger esta espécie e só nos últimos sete anos foram salvas mais de 30 mil aves.
Os cagarros chegam aos Açores por volta do mês de fevereiro, nidificam em locais junto à costa e quando as crias têm perto de três meses partem rumo ao hemisfério sul.
É nessa altura que os juvenis começam a sair dos ninhos, em busca de alimento, mas muitas vezes desorientam-se com as luzes dos carros ou da iluminação pública e acabam por ser atropelados ou por embater em paredes.
Todas as noites, entre as 19:00 e a 01:00, os vigilantes da natureza saem à rua em brigadas científicas para recolher cagarros, mas há uma linha gratuita, disponível 24 horas por dia, para que a população possa colaborar e, por noite, chegam a receber duas dezenas de chamadas.
Domingo, 20:00, a brigada da ilha Terceira faz-se à estrada já com dois pedidos de auxílio. Um deles leva-os até à freguesia de São Mateus, onde Maria de Fátima Silveira os espera com uma ave ferida.
“Bateu na parede. Quase que entrava pela janela dentro. Depois caiu de papo para o ar e ficou deitado no chão”, relata.
A viver à beira-mar, todos os anos Maria de Fátima encontra cagarros e até já os viu entrar pela casa dentro. Só naquela semana já tinham aparecido três na sua rua.
Não fosse o estado do animal, ela própria o teria libertado junto ao mar no dia seguinte. Em vez disso, colocou-o “direitinho dentro de uma caixinha”, com um pano por cima, e pediu à filha que ligasse para a linha SOS Cagarro.
“Nem sequer quis jantar mais. Passou-me logo a vontade de comer, quando vi o bicho daquela maneira, a tremer”, revela.
Uma vez, recorda, levou uma bicada no nariz, quando segurava cinco cagarros, que encontrara na freguesia do Porto Martins, enquanto estava a pescar.
Ainda assim, continua a agarrá-los sem medo e a ajudá-los, mesmo quando atrapalham a pescaria.
“Eu adoro. Gosto do barulho. Às vezes quando estou a pescar no porto de São Mateus, estou a guindar a isca e vêm todos atrás. E eu, com dó, tenho de aguentar uma asa debaixo do pé e desenriçar a seda. E depois deixo-a ir para o mar outra vez”, conta.
Numa ronda pelas zonas costeiras da ilha, a brigada encontra mais duas aves na Prainha, em Angra do Heroísmo, e outras duas a poucos metros no Porto das Pipas.
A população que passeia pela cidade àquela hora para para assistir aos resgates, mostrando que já quase ninguém fica indiferente à espécie.
“Acho que se faz muito boa educação ambiental hoje em dia nos Açores e a campanha SOS Cagarro é uma campanha de sucesso. As gerações mais novas cada vez estão a ter uma consciência mais ambientalista e sabem o que fazer quando encontram não só cagarros como outras aves feridas”, salienta Rúben Coelho.
Natural de uma freguesia costeira da ilha Terceira, trabalha na conservação de espécies marinhas há cerca de oito anos, mas há muitos mais que salva cagarros de forma voluntária.
“Sempre tive muito gosto pela natureza, especificamente pela parte da conservação da natureza e, quando escolhi a licenciatura, foi nesta área”, explica.
Elisabete Coelho, a mulher, é rececionista, mas acompanho-o também há oito anos como voluntária nas brigadas.
“Faço a parte escrita. Apanhar [os cagarros] ainda tenho um pouco de medo, mas vou tentar um dia”, adianta, enquanto regista as informações de um novo resgate, acrescentando que já levou uma “bicada grande”.
Ainda não são 22:00 quando chega uma nova chamada, desta vez para a freguesia da Feteira, onde Rúben encontra uma antiga professora.
Conceição Codorniz aprendeu a gostar de cagarros com o pai, já falecido, ainda antes de existir uma campanha de sensibilização regional.
“Ele sempre protegeu os cagarros. Chegou a fazer buracos ali atrás nas rochas para eles fazerem os ninhos”, conta.
Nesta altura do ano, o pai colocava um casaco por cima dos cagarros quando os encontrava e libertava-os junto ao mar, mas Conceição nunca chegou a aprender a fazê-lo e como “eles têm um bico muito perigoso” optou por chamar a ajuda dos vigilantes da natureza.
Admite que, antes de existir iluminação pública na rua onde vive, se avistavam mais, mas ainda encontra muitos cagarros e, quando não ouve o seu som tão característico, já estranha.
“Aqui à beira-mar ouvimos e quando não ouvimos parece que não estamos na altura certa”, salienta.
O turno dos vigilantes da natureza só acaba, por volta da 01:00, mas, no dia seguinte, às 09:00, Rúben inicia uma nova ronda, desta vez pela GNR, pela PSP e pelo posto de uma empresa de seguranças privados no Porto das Pipas, onde recolhe mais 20 cagarros, que foram deixados pela população, dentro de caixas de cartão, na noite anterior.
Segue depois para o Cais da Figueirinha, onde os vai libertar, aproveitando a encosta do Monte Brasil, que protege o local do vento.
“À noite eles têm tendência a voltar novamente para a cidade, porque são atraídos pelas luzes. De manhã, dá tempo para eles irem até várias milhas fora da costa e, quando anoitecer, eles já estão muito longe e já não são atraídos pelas luzes”, justifica.
Um a um, os cagarros juvenis vão levantando voo, com destino à costa sul-americana ou à costa oeste africana, mas é “muito provável” que Rúben os volte a encontrar na próxima primavera.
Lusa