‘Não consigo admitir que sou gay’

casamento-gay homossexualUm ano após o primeiro casamento homossexual, ainda há quem esconda a sua sexualidade.

Maria é uma mulher realizada. Aos 30 anos, trabalha na área que elegeu, radiologia; tem um bom salário; uma vida social intensa e uma relação de honestidade com a família. Em tudo, menos no que se refere à companheira: para os pais e para os irmãos de Maria, a mulher com quem namora há cerca de um ano é apenas uma «amiga muito próxima», que às vezes vai passar os fins-de-semana com a família.

«Sou preconceituosa comigo mesma. Os meus pais nunca iriam aceitar uma relação homossexual, sobretudo a minha mãe», desabafa a jovem, que vive numa pequena cidade do interior do país. Por isso, prefere não ser identificada.

Aliás, um ano depois da entrada em vigor da nova lei e do primeiro casamento entre pessoas do mesmo sexo, «pouco ou nada mudou» para a maioria dos homossexuais, garante João, professor de teatro numa universidade sénior no Algarve, que também ‘esconde’ a sua sexualidade.

«Aqui, como em todas as cidades por onde passei, ninguém assume nada. Muitos homossexuais mantêm vidas duplas. Para os outros, são ‘homens casados’, com filhos, trabalho, família. E às escondidas têm relacionamentos gay».

João, hoje com 57 anos, sabe do que fala. Depois de mais de duas décadas de vida partilhada, Rui «continua a ser um irmão, para os de fora».

À partida, não haveria qualquer motivo para este «secretismo», como o próprio define. Mas «como se consegue trabalhar e conviver com as pessoas no dia-a-dia, quando nos olham de lado, nos rotulam?» – questiona.

João dá o exemplo de um caso a que assistiu há algum tempo na rua, o de «um miúdo que ia a passar, enfiado debaixo de um boné»: «Ele não teria mais de 17 anos. Do outro lado da estrada, no passeio, ia um grupo a chamar-lhe ‘bicha’, a humilhá-lo, achincalhá-lo. É revoltante».

As associações de defesa dos direitos dos homossexuais têm alertado que em todo o país, «a homofobia continua viva como dantes». Lisboa e Porto, cidades mais ‘anónimas’, continuam por isso a ser os principais destinos escolhidos pelos homossexuais – independentemente do seu sexo – para poderem «ser apenas» como são.

Maria explica porquê: «Mesmo com os meus amigos nunca me sinto livre para falar da minha homossexualidade. Sei que me vão julgar. Eu também julgo os outros – o mundo é assim. Quero ser vista como uma pessoa normal».

Casados para disfarçar

Desde que a nova lei entrou em vigor, em Junho de 2010, foram realizados 380 casamentos, mais entre homens do que entre mulheres (ver infografia).

Um número que Paulo Corte Real, da associação ILGA, diz que não pode ser usado para contabilizar a quantidade de gays e lésbicas que há no país. «Como nos casais hetero, as pessoas podem escolher não casar», conta, sublinhando que muitos optam por viver apenas juntos.

Mas essa realidade, refere, vai continuar desconhecida, uma vez que a Comissão de Protecção de Dados impediu o Instituto Nacional de Estatística de, nos Censos 2011, questionar os portugueses sobre se viviam com alguém do mesmo sexo.

E há muitos que ‘enganam’ as estatísticas, pois têm um casamento heterossexual apenas no papel.

Manuel, de 40 anos, foi casado durante dez. Esteve «sempre apaixonado» pela mulher, garante. Mas nunca deixou de se interessar por homens, sem que ela suspeitasse. «Sempre escondi de todos. Acho que, nessa altura, escondia-o até de mim mesmo», confessa. Os interesses dos dois membros do casal foram seguindo caminhos diferentes e a separação surgiu como caminho inevitável.

Entretanto, há cinco anos, Manuel conheceu a parceira ideal, que aceita viver com ele, sabendo que é homossexual. «Entre nós, existe outro tipo de amor: o amor baseado no companheirismo, na solidariedade», explica o empresário, que vai mantendo vários relacionamentos gays. Um segredo que partilha com a mulher e pouco mais. «Dos nossos amigos, são poucos os que sabem», diz Manuel. E a companheira acrescenta: «Até comenta comigo que este ou aquele são homens interessantes, não o esconde».

O medo de ser julgado leva-o a ter esta atitude. «Quando alguém pensa que sou gay, sobretudo os homens, começam a afastar-se. São simpáticos, cordiais, mas afastam-se» – conta, explicando que viaja com frequência para fora da cidade onde vive, no Norte, para «não ser olhado com desdém».

A alternativa de vida que encontrou foi, por isso, partilhar o dia-a-dia, incluindo os filhos de ambos, de anteriores relações. E descreve a relação que tem com a companheira como uma «forte amizade». «É uma outra forma de amor», assegura.

 

 

Reportagem Jornal Sol

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