Um filme – “Pare, Escute e Olhe”, de Jorge Pelicano – e os três prémios que ganhou no DocLisboa abriram a polémica: está o festival de cinema documental contaminado pela televisão e a premiar um produto de TV? Não, dizem os defensores: o filme não só é cinema como tem uma capacidade de comunicar com o público, coisa que muitos não têm. Está sim, contrapõem os críticos, quando o que devia fazer era valorizar quem experimenta fora dos formatos. Que festival deve ser o Doc?
Ainda a sessão para mostrar o filme premiado na competição nacional do festival de documentários DocLisboa ia a meio, no domingo a seguir à entrega de prémios, e já a polémica tinha rebentado. “Pare, Escute e Olhe” é um “programa de televisão?”. Cabe neste festival? Devia sequer ter sido seleccionado? E, mesmo sendo aceite na competição, merecia os três prémios que conquistou? Está o DocLisboa a “ficar contaminado pela linguagem televisiva”?
Documentaristas, produtores, críticos, espectadores dividiam-se, uns em defesa do filme de Jorge Pelicano – sobre a desertificação do interior e em defesa da linha de comboio do Tua que corre o risco de ficar submersa debaixo de uma barragem – outros classificando-o como “reportagem de televisão”. Houve até quem saísse da sala ao fim de pouco tempo. Enquanto muito do público aplaudia o filme na sessão e discutia com o realizador o futuro da linha do Tua, no Facebook abria-se um debate sobre o que deve ser o programa editorial de um festival de documentário: serve para ver cinema ou para ver televisão?
“O DocLisboa é um festival de documentário. E o documentário ou é cinema ou não é documentário. [O filme vencedor] não é um documentário, é um produto de televisão”, afirma o produtor Pedro Borges, da Midas Filmes. “É grave as pessoas acharem que já não há diferença entre um documentário e um programa de televisão”.
“O filme do Jorge Pelicano não é um produto televisivo típico”, diz, por seu lado, Sérgio Tréfaut, director do Doc. “Recusamos imensos programas de televisão, feitos para um canal de televisão. Este é um filme, é um trabalho que demorou três anos a ser feito”. Não há dúvidas, para Tréfaut, de que “‘Pare, Escute e Olhe’ não tem uma duração televisiva, nem formato clássico de televisão – tão característico das últimas décadas de retratos de artistas. É um documentário político, engajado, com linguagem provocadora, directa e informativa, herdada da televisão mas pouco habitual em Portugal”.
Catarina Alves Costa é documentarista. E o que a surpreendeu não foi a presença do filme no festival, que considera legítima; foi o facto de ter ganho três prémios. “Não acho que seja um programa de televisão e não acho que o facto de estar no festival seja um problema. O que acho estranho é ter ganho logo os três prémios. Porque é um filme que vem de uma linha de reportagem, sem uma relação de proximidade com as pessoas, sem uma atitude cinematográfica clara. É um acumular de provas. É a lógica da reportagem, que mostra que há um problema e aponta uma solução”.
E então?, pergunta Tréfaut. Não acontece o mesmo com muitos filmes estrangeiros mostrados no Doc? Catarina Alves Costa concorda que sobretudo na secção Investigações houve muitos filmes com esse perfil. “E se estão lá os internacionais porque não hão-de estar os nacionais? Não vou criticar essa opção”. Mas lamenta que “no panorama actual do documentário em Portugal, que é dramático em termos de circulação dos filmes, em que não existem salas e poucos saem em DVD, e em que há um esforço enorme de uma nova geração para tentar fazer coisas diferentes, o festival não opte por premiar o que se faz de mais experimental, de mais arriscado”.
O Doc mostra de tudo, contesta Tréfaut, embora “exclua regularmente documentários feitos apenas para televisão”. Mas, na opinião do director, “o pior é quando se nota que alguém quer apenas ‘ser artista’ ou ‘ter estilo’ sem entrar em diálogo com ninguém”. Acha “deprimente ver que alguém se preocupa mais com a sua aparência, com o estilo da sua assinatura, com ‘o que está na moda’, do que com o sentido, o valor e o interesse da obra que está a tentar produzir”.
O festival que organiza está “vivo, não está mumificado ou preso a categorias estéreis”. E dá como exemplo quatro filmes da competição nacional, com características muito diferentes – uns mais experimentais, outros menos – mas que, acredita, têm todos potencial para estrear em salas e “juntos fazerem dezenas de milhares de espectadores”: “Pare, Escute e Olhe”, “Com Que Voz”, de Nicholas Oulman, “Lisboa Domiciliária”, de Marta Pessoa, e “48”, de Susana Sousa Dias. Este último, acrescenta, “provavelmente o mais ousado e vanguardista que recebemos, foi ovacionado pelo público e até reconhecido como uma obra prima pela imprensa brasileira, como é o caso de Amir Labaki na ‘Folha de São Paulo'”.
Falta de produtores?
E, no entanto, foi o filme de Pelicano que o júri entendeu premiar. Porquê? Guy Knafo, francês e ligado à distribuição televisiva a nível mundial através da sua empresa 10 Francs, era um dos três membros do júri e explica ao Ípsilon, por telefone a partir de França, as razões da sua opção. Quando ouve falar de dúvidas sobre o prémio lança: “Alguém se deu ao trabalho de ver até que ponto o filme tem ritmo, fala de histórias humanas e universais, até que ponto a montagem é boa, poderosa, ao serviço de uma causa verdadeira, universal?” Desabafa: “Que felicidade quando uma história nos é bem contada!”.
O entusiasmo é partilhado por outro membro do júri, o holandês Raymond Walravens, director e programador do Rialto, sala de Amsterdão especializada em cinema independente. Reconhece várias qualidades aos diferentes filmes apresentados na competição nacional. Mas considera que muitos tinham fragilidades. “Nem todos tinham o ritmo, o tema, ou a forma de contar a história suficientemente forte para manter a audiência do cinema atenta durante 90 minutos”.
E isso leva a outro problema que Walravens identifica no documentário português: “Os realizadores têm material muito interessante mas percebe-se que não há um produtor ou um editor que lute com eles para tentarem fazer o melhor filme para a audiência”. Este trabalho de um produtor que participa, discute e orienta o realizador “está menos desenvolvido em Portugal do que na Holanda e isso tem um efeito negativo na qualidade dos filmes”.
Não entende isso como forma de limitar a criatividade do autor. “Se alguém quer escrever um livro ou pintar um quadro, óptimo, não está a gastar o dinheiro dos contribuintes. Mas se quer fazer um filme deve pensar que o que está a fazer custa dinheiro”. Um festival como o Doc tem uma estratégia para tentar chegar ao maior número de pessoas. “Porque é que há-de tanta gente estar a esforçar-se para que um filme seja visto por mais pessoas e o único que não se preocupa com isso há-de ser o realizador?”.
Vê, por outro lado, como positivo que no caso do filme de Jorge Pelicano haja o financiamento de uma televisão (a SIC) mas que “deu ao realizador a liberdade de fazer o que queria”. Este filme, acrescenta, “provou que não interessa quem paga, interessa que o realizador tenha o tempo que precisa para fazer o melhor filme possível”.
Mas há quem considere que esse tipo de intervenção dos produtores, defendida por Walravens, está muitas vezes condicionada pelas exigências do formato televisivo, normalizando os produtos. “Se calhar”, diz Catarina Alves Costa, “há uma especificidade do documentarismo português e se calhar não queremos fazer igual ao que se faz em todo o lado. O cinema português sempre teve uma identidade muito forte e o documentário também está dentro disso”.
Nos festivais europeus “há muita coisa igual, e isso tem a ver com o poder das televisões”, é também a opinião de Daniel Blaufuks, fotógrafo e autor do documentário “Um Pouco Mais Pequeno do que o Indiana”. “Isso pode ser feito em Portugal, mas é isso que querem? Uma linguagem uniforme e televisiva?”.
Uma visão do mundo
Para alguns dos críticos, a questão mais importante não é a de saber como é que o filme de Pelicano ganhou três prémios. É, antes, saber como foi seleccionado para o Doc. Maria João Madeira fez parte do comité de selecção (como em anos anteriores) e assume a escolha colectiva que inclui o “Pare, Escute e Olhe”. No entanto, nota que “grande parte dos filmes que surgem são nitidamente contaminados por um discurso televisivo, o que em parte tem a ver com o apoio das televisões, a esperança [dos realizadores] de que os filmes venham a passar na televisão”.
Um documentário “tem um olhar, propõe uma visão do mundo. É diferente de estar a escalpelizar um assunto de uma forma mais próxima da prática jornalística”. O ter ou não uma tese a defender não é a questão. “Há toda uma escola de documentário militante”. A verdadeira diferença é que um documentário “transporta um olhar e tem uma pulsão cinematográfica”, há nele “uma relação que se estabelece com o tempo e com o espaço”.
É disso que, como espectador do Doc, vai à procura Daniel Blaufuks. “O que se pede é que as coisas tenham qualidade”. Dito isto, considera o Doc um festival “mais virado para a política do que para a poesia, mais para o real, para as coisas a quente, do que para a introspecção”. Ressalva aquilo que faz a diferença em relação a esta opção: a secção Riscos, programada por Augusto M. Seabra, que “vai escolhendo produtos mais artísticos, mais próximos do cinema”.
Em 2006 o Doc rejeitou o anterior filme de Pelicano “Ainda Há Pastores”. Ana Isabel Strindberg fazia parte da direcção do festival nessa altura e revela que o filme não foi aceite precisamente por “ter uma linguagem audiovisual e não cinematográfica”, algo que não se integrava “no Doc, que é um festival de cinema”. A diferença? “A linguagem audiovisual quer dar muita informação de forma muito rápida. E por vezes não há um ponto de vista”.
A contribuição do crítico e realizador Lauro António para este debate é a prova de que se pode olhar para o mesmo objecto de uma perspectiva oposta. Programou o “Ainda Há Pastores” para o Cine-Eco, em Seia, no mesmo ano em que foi recusado no Doc e assistiu ao primeiro grande sucesso público de Pelicano. “Seleccionei-o porque achei que era um excelente documentário sobre uma realidade portuguesa [os pastores], com grande solidez de construção”. Na altura, sem conhecer o realizador e sem qualquer ideia preconcebida, considerou que o filme tinha “uma certa honestidade de olhar e procurava sair da snobeira nacional, não ostentando uma atitude de superioridade sobre nada”, sem “os tiques formais de alguns documentários portugueses que querem ser muito intelectuais e profundos e às vezes não chegam a nada”. Acompanhou depois o realizador ao Brasil, onde o filme passou no FICA, em Goiás, e confessa que nunca tinha visto “uma reacção tão entusiasta em relação a qualquer filme português”.
O documentário “é um género aberto, de fronteiras largas”, afirma Sérgio Tréfaut. Documentário é cinema, insiste Pedro Borges. E a diferença, avança, entre cinema e televisão é clarissíma. “É a mesma que há entre livros e literatura e que 2500 anos de História ajudam a explicar. O cinema tem uma História, o documentário tem uma História, e quem nunca viu nada não pode falar disso”. Estar a falar de documentário televisivo não faz, para este produtor, qualquer sentido. E “é uma ideia que durante anos matou o documentário”. O futebol que passa na televisão “não é jogado ‘à maneira da televisão’, é futebol e a televisão é apenas o difusor”.
O Doc “não é um cineclube de arte para os amigos”, remata Sérgio. Tem a ambição de “falar sobre o que se passa no mundo, interferir sobre a sociedade, alterar costumes, enriquecer o debate público.” Sim, mas Catarina Alves Costa lamenta que quando “se quer ser [um festival] para o grande público acabe por se standartizar o que se mostra”. E se há fragilidades nos filmes portugueses, se faltam produtores criativos, “isso resolvia-se com mais exibição, mais discussão.” O problema é que “neste momento há falta de discussão no meio do documentário.”
Alexandra Prado Coelho – in http://ipsilon.publico.pt/