As primeiras imagens das ilhas Selvagens que Paulo Henrique Silva reteve na memória são as de uma reportagem televisiva a que assistiu com apenas 10 anos. Desde então, acalentava o sonho de pisar o “lugar mais desconhecido e inóspito de Portugal”. Em Maio e Junho de 2008, volvidos 27 anos, o técnico de som de profissão e apaixonado pela fotografia teve o privilégio de viver um mês no território administrado pelo Parque Natural da Madeira.
Concedida a autorização para estadia prolongada pelo executivo madeirense, partiu do porto do Funchal, no Navio Patrulha Cacine da Marinha Portuguesa, rumo ao ponto mais a sul do território português. Depois de cerca 300 quilómetros, percorridos ao longo de 14 horas de viagem, e apenas quatro horas de sono, a visão da Selvagem Grande iluminada pelos primeiros raios de sol do dia 15 de Maio é uma imagem que vai “recordar o resto da vida”.
Mas o primeiro destino seria a Selvagem Pequena, que palmilhou durante três horas, registando imagens da fauna e da flora, assim como alguns sons do mar, do vento e das aves. “A Selvagem Pequena parece uma laje no meio do mar. São apenas vinte hectares de terreno que quase dobram com a baixa-mar. Aqui nunca foram introduzidas espécies exóticas de fauna ou de flora. A ilha vive tranquilamente desde a altura em que nasceu, há possivelmente vinte e sete milhões de anos. Não há muitos lugares assim no planeta Terra”, descreve.
Daí, partiu para a Selvagem Grande, a onze milhas náuticas, para observar e registar, durante 27 dias, a vida selvagem da ilha. “Há quem lhe chame um rochedo no meio do mar. Também já li algures que a Selvagem Grande vista do mar era desoladora. Mesmo com falésias altas e escarpadas, com vegetação rasteira e sem água, ou seja, sem palmeiras, nem cascatas de água doce e praias de areia branca, acho este lugar extraordinariamente fascinante”.
História desoladora
Até à sua aquisição pelo Estado Português, em 1971, as ilhas Selvagens pertenceram a muitos proprietários. Foram concedidas a guerreiros que se distinguiram nas lutas marítimas, doadas, vendidas e serviram para saldar dívidas de jogo, até que foram parar às mãos de uma família da Madeira, os Rocha Machado. Nessa altura, eram alugadas a grupos de pessoas durante várias semanas para pescar e, sobretudo, para caçar juvenis de Cagarra, em finais de Outubro.
A Selvagem Grande foi alvo de várias tentativas de povoamento. Mas, o facto de não chover e de, em consequência, existirem poucas nascentes praticamente secas levou a que essa hipótese fosse posta de parte. Nessa fase, foram introduzidas espécies exóticas de fauna e flora com carácter invasor. As cabras foram eliminadas há muito tempo. No entanto, os coelhos, murganhos e a tabaqueira só foram erradicados há poucos anos num trabalho desenvolvido pelo Parque Natural da Madeira, que correu de forma eficaz e exemplar, hoje reconhecido internacionalmente. Neste momento, a Selvagem Grande desenvolve os seus habitats naturais em paz consigo própria.
A Selvagem Pequena só tem vigilância nos meses de Abril a Outubro. Fazer rendições durante o inverno nesta parte do Atlântico, com baixios por todos os lados, não é tarefa fácil. Aliás, a inospitalidade e os muitos baixios destas ilhas foram os principais motivos para que Diogo Gomes, navegador português ao serviço do Infante, em 1438, as chamasse de Selvagens.
Na Selvagem Grande, a vigilância é mantida durante todo o ano por dois vigilantes do Parque Natural da Madeira, que se revezam em estadias de três semanas. Há ainda uma residente fixa. Uma cadela com o nome Selvagem, que logo aos primeiros dias de vida foi levada para a ilha para fazer companhia aos vigilantes.
É na Baía das Cagarras que se encontram as duas únicas casas da ilha – a estação de vigilância do Parque Natural da Madeira e a casa do médico e ornitólogo Francis Zino. A estação de vigilância tem três quartos com capacidade para nove pessoas, duas casas de banho com água quente, uma cozinha e uma sala, que é também o posto de rádio das Selvagens.
Afinação dos sentidos
A água é de cisterna, captada das chuvas, e a electricidade provém de painéis solares. A água tem de ser racionada, pois, devido às baixas altitudes, as nuvens arrastadas pelos ventos passam sem que haja precipitação. Apenas ocasionalmente, as ilhas são afectadas por tempestades que se formam no Atlântico, acompanhadas de ventos provenientes de Norte ou de Oeste, que provocam chuvas torrenciais e trovoadas durante algumas horas. No entanto, há registos de tempos em que não choveu durante três anos.
Todos os dias, os vigilantes fazem três contactos rádio com a Capitania do Porto do Funchal, os chamados “QSO”, transmitindo todos os acontecimentos extraordinários, bem como o estado do tempo e do mar nesta ponta do país. Para além disso, o isolamento é total.
“Não há qualquer tipo de comunicação com o exterior, para além das chamadas via rádio que fazia duas vezes por semana para casa e da TV Cabo. Não há telemóveis, nem Internet. É preciso levar água para beber e cozinhar. Tomamos banho com a água das chuvas captada pela cisterna e a louça é lavada com água salgada”, conta Paulo Henrique Silva.
A experiência nas Selvagens ensinou-lhe que “não precisamos de muita coisa para viver”. “Quando não temos nada, só a natureza, os sentidos desenvolvem-se e afinam-se de uma forma quase sobrenatural. Todas as coisas sabem melhor – aquilo que se vê, que se ouve e que se prova. Ficamos muito sensíveis a tudo”.
Galápagos do Atlântico
Consideradas as Galápagos do Atlântico, as ilhas Selvagens são um dos mais importantes locais de nidificação das aves marinhas deste oceano. A estadia de Paulo Henrique Silva neste “ponto especial do globo” pretendeu proporcionar, para além de um registo da fauna e flora, a transmissão de “aspectos sensoriais” do local.
Esse objectivo foi materializado no projecto “llhas Selvagens 30° 08’ N 15° 54’ W”, que inclui um CD áudio-multimédia – numa co-edição do IAC-Instituo Açoriano de Cultura, da Universidade da Madeira e d’ Os Montanheiros – e uma exposição de fotografia – produzida pela direcção regional de Cultura, no âmbito do Projecto Mediat, e patente na Galeria do IAC, em Angra do Heroísmo, até 15 de Janeiro. A mostra itinerante deverá depois percorrer os museus e ecotecas da Região, assim como os arquipélagos da Madeira e das Canárias.
“Pretendo com este trabalho que as pessoas possam também sentir uma série de coisas sobre aquele sítio, ao lerem os textos do meu diário, ao verem as fotografias ou ao ouvirem os sons das ilhas. Não se trata de um levantamento de existências, mas de um registo daquilo que vi, ouvi e senti, durante o período em que lá estive”.
Segundo o autor, o projecto ambiciona ser, sobretudo, “um contributo para a promoção e conservação da vida selvagem”. “A biologia, a química, a geologia e a física dos oceanos estão interligados com o bem-estar das ilhas. Por tudo isto, as ilhas Selvagens constituem, por si só, um excelente bioindicador para a vida dos oceanos e para a vida do planeta Terra. Espero que a minha passagem seja um pequeno contributo para isso”.
Na sua opinião, “Portugal anda muito distraído em relação a estas coisas”. “Estes territórios não estão tão bem estudados como se pensa. As coisas estão a mudar a nível ambiental e, neste contexto, há lugares em relação aos quais é preciso ter muito cuidado”, alerta.
O currículo
Paulo Henrique Gomes da Silva nasceu na ilha Terceira, em 1971. Iniciou a sua actividade profissional como técnico de som, em 1987, no Rádio Clube de Angra, estando, desde 1988, ao serviço da Antena 1 Açores, nos estúdios de Angra do Heroísmo.
Desde 2001, tem vindo a dedicar grande parte do seu tempo à pesquisa e recolha das tradições orais dos Açores, algumas das quais foram utilizadas por grupos musicais nacionais e estrangeiros. Foi responsável pelas gravações do CD “À Viola”, editado em memória de José Luís Lourenço, e pelos trabalhos de digitalização e restauro de som do CD “José da Lata – O Pastor do Verbo”, editado pela direcção regional da Cultura. É autor do duplo CD “Tradições Orais – Corvo, São Jorge e Terceira”, editado pelo IAC. Gravou e ilustrou com som de ambientes naturais dos Açores o CD “Horizontes da Tranquilidade”, da poetisa da Póvoa do Varzim Benedita Stingl.
Foi responsável pela criação do Ecomuseu-Núcleo Museológico dos Altares, sendo autor da exposição fotográfica permanente e dos documentários em vídeo sobre aquela freguesia rural da ilha Terceira. Foi convidado a participar, com imagens sobre a flora endémica dos Açores e em parceria com Paulo Barcelos e Victor Hugo Forjaz, no “Atlas Básico dos Açores”, editado pelo Observatório Vulcanológico e Geotérmico dos Açores.
É autor do livro de fotografia “O Vulcão de Santa Barbara”, editado pelo IAC e pela Associação Os Montanheiros, bem como da Instalação de som e imagem intitulada “A Madrugada das Cagarras”, que incluiu a publicação de um CD áudio-multimédia, com edição do Museu de Angra do Heroísmo e da Ecoteca da Ilha Terceira.
Outro dos seus sonhos seria fazer um registo fotográfico e sonoro sob o ponto de vista natural de todas as ilhas Atlânticas descobertas por portugueses – Açores, Madeira, Desertas, Selvagens, Cabo Verde, São Tomé e Príncipe, Ascensão, Santa Helena, Tristão da Cunha, Trindade e Fernando de Noronha. Um projecto que, no entanto, admite ser, para si, “impossível de realizar”.
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