[Escrever uma crónica mensal é um desafio desassossegador. Implica, desde logo, a escolha de um tema. Um tema em mais de centenas que nos assolam todos os dias. A incessante procura de um princípio lógico e orientador, levou-me a um caminho. Se um desafio é bom, dois serão melhores. Para além do desafio de escrever, desafiei-me a outro: o de ler(mais). O caminho encontrado para esta colaboração com o Açores24 passou por preencher essa lacuna: Decidi ler um livro por mês e a partir da sua análise , onde sempre que possível abordar o paralelismo da minha leitura do mundo contemporâneo.]
O Raul e AMIR
A leitura de uns dias do mês de fevereiro: O predestinado de Natália Correia, em Grandes
Aventuras de um Pequeno Herói( Raul), leva-nos àquele que é o papel de um menino pobre
de um reino faustoso, numa família monoparental e onde o pai, para garantir o sustento,
viaja durante dias. Não é negligência, é a emergência da fome. Nos dias de hoje, é
impensável, e bem, uma criança estar sozinha numa casa dias a fio. Nos dias de hoje, é
expectável,e bem, que as crianças sejam acompanhadas e amadas. Infelizmente na
sociedade do hoje e do tudo o expectável, por vezes, acompanhada o impensável. Por esta
firmeza de princípio as instituições de promoção e proteção das crianças são essenciais. Em
bom tempo foram criadas as Comissões de Proteção de Crianças e Jovens em perigo,
enquadradas na Lei de protecção de crianças e jovens em perigo, em 1999 por António
Guterres, e nos Açores, o Comissariado dos Açores para Infância, em 2016, por Vasco
Cordeiro. Nesta importantíssima tarefa de proteção das nossas crianças Escolas, Câmaras e
Juntas de freguesia deveriam estar muito mais presentes e ativas. O Raul procura mudar o
mundo daquelas que são as injustiças – por essa razão o castanheiro conselheiro o apelidara de predestinado. Amir é filho de um casal sírio. Morreu há dias. É o segundo filho do casal que morre nesta guerra tirana. Como Amir, em dois meses, morreram ou ficaram
gravemente feridas mais de 1000 crianças no conflito na Síria, por média uma em cada hora.
É esta realidade num mundo onde se fazem minutos de silêncios e tweets perante a morte de crianças nos países do ocidente e um silêncio ensurdecedor perante a carnificina na Síria. É também este o mundo onde a solução apresentada para defender as crianças num espaço que por si só deveria garantir a proteção, é que o seus professores – aqueles que ensinam e preparam para a vida – passem a matar para os poder ensinar; ou perante as milhares de crianças a morrer de fome em África e onde muitas daquelas que escapam estão na rota do tráfico. Um silêncio lúgubre. É tudo muito triste e desproporcional. Da tristeza e da desproporção da distribuição da riqueza, contrário era o desejo de Raul que conseguiu com a sua perseverança, coragem e sentido de justiça ao trazer alegria ao seu povo, libertando-o do rei tirano e distribuindo melhor a riqueza do reino. Neste mundo contemporâneo “Os ricos estão mais ricos e os pobres estão um pouco menos pobres”, note-se que a “porção detida pelos mais ricos (1% da população) cresceu duas vezes mais do que a dos 50% mais pobres, entre 1980 e 2016” – trabalho da World Inequality Lab. Raul foi a voz contra a tirania. A harmonia vivida neste romance contrasta com a opressão vivida em diferentes locais do mundo contemporâneo e onde o fosso entre ricos e pobres aumenta. Este menino Raul, num belo romance infantil , “ensina o papel das crianças a tornarem melhor o mundo de amanhã”. Amir e tantas outras crianças nunca terão essa oportunidade. Roubaram-lhes.
Sónia Nicolau | Março 2018